quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Felicidade

"Pois é, falaram tanto que a morena foi embora", e com ela foi-se também a mulata, a negra, a loura, a asiática, isso porque, todos são unânimes em achar que a Felicidade é feminina. Não, não. Não acho e talvez seja uma das poucas exceção à regra. Quando a conheci,  ela era um moreno forte, bonito, segundo dizem, risonho e bem humorado, que se comprazia em me tomar nos braços. Eu não sabia sequer balbuciar a maioria das palavras, portanto, não podia exprimir o que sentia, quando o meu pai me carregava colocando-me no ombro como se eu fosse um troféu, mas eu sabia o que sentia. Uma sensação gostosa, um bem estar  indescritível, que só podia ser o que depois viria a saber ser Felicidade. Eu já a conhecia antes, desde o momento em que fui acalentado pela vez primeira por minha mãe. Desfrutei de sua companhia em várias oportunidades. Do mesmo jeito que muita gente, eu também tentei defini-la ou pelo menos conceitua-la. Gastei tempo em vão.  Durante muitos e longos anos, ela foi minha companheira. Estava comigo quando fui à escola pela primeira vez. Eu que até então sentia um misto de curiosidade e porque não confessar, de inveja quando os mais velhos falavam de escola, contava quase desesperadamente os dias e depois as horas para saber mesmo o que me aguardava. Ansioso, tenso, coração literalmente pulando dentro do peito, sem saber realmente como era, algumas vezes tentei colocar-me no lugar deles e até descrever ou sentir as sensações que eles descreviam, e ainda a caminho da escola, comecei não apenas a sentir, mas tenho a certeza, por mais louca que pareça a afirmação, que eu "via" a Felicidade. Ela estava na farda, no sapato novo, no cabelo bem penteado, nos livros de colorir e até na merendeira, que a bem da verdade, não era u'a merendeira, era um pequeno pacote  com uma fruta e alguns biscoitos de goma. Posso ter esquecido alguma coisa, mas da Felicidade não. Ela estava ali e me acompanharia ao longo de muitos anos. Estava sempre ao meu lado na praia, nos banhos de mar escondido, quando para evitar o castigo por desobedecer à ordem materna, tirava os sapatos, toda a farda e com mais alguns colegas, íamos para um lugar onde não havia frequência àquela hora, e vigiados por um colega que se recusava ou não podia entrar no mar, curtia mergulho e apostava corrida dentro ou fora d´agua, onde o que menos importava era quem vencia. E a Felicidade ali, me bafejando junto com o vento, sujando os meus pés com a areia. Eu podia senti-la e se fechar os olhos a sentirei novamente. E ela me acompanhava durante todo o caminho, entre brincadeiras e preparo das desculpas por um possível atraso e as prováveis reprimendas (sabe que até nessa hora ela estava ali!?). Pois é. Ela não me abandonava, nem mesmo quando eu perdia uma partida de futebol contra os garotos de outros bairros ou de outras ruas. Incrível, como a Felicidade era minha companheira, minha cúmplice. Vou ser repetitivo e dizer vários vezes: o  pior é que não sabia o que era, por isso, não a valorizava. Aliás, gostaria que todos sábios e cientistas do mundo, incluindo aqueles que descobriram que a sinapse se processa em milionésimos de segundo, que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço no mesmo momento, que tudo é atraído pelo centro da terra, que ela é redonda, que mediram a velocidade da luz ou calcularam a distância até o sol, que descobriram a cura de inúmeras doenças estudando seres microscópios e por aí a fora, que todos os xamãs, todos os gurus, todos os padres e pastores de todas crenças e igrejas, eles se reunissem para definir ou pelo menos, conceituar essa tal Felicidade.  Ela estava tão presente em minha vida, tão integrada em todos os momentos, que eu nem me incomodava com ela, sabe,  eu era feliz e pronto, achava que a vida era e seria sempre assim. Não tinha problemas de consciência. Alguns pecadilhos que uma boa confissão e uma dúzia de pai-nossos bastavam para pagar a minha dívida, com pessoas e com Deus,e não me tiravam o sono, nem o apetite. Sempre fui um menino mimado, por oito irmãos mais velhos, bem mais velhos, quatro mulheres e quatro homens,  incluído na conta um primo que conviveu comigo desde que começou o curso ginasial até concluir a faculdade. Eu tinha além de praticamente tudo que um garoto de minha idade e de classe média podia ter, com um bônus muito grande. Uma atenção, um carinho, um amor, um cuidado todo especial, sem faltar reprimendas e conselhos em dose suficiente para influir positivamente, disso tenho certeza, em meu caráter, em meu jeito de ser, de encarar a vida. Aos poucos, morenas, louras, mulatas, estrangeiras negras ou brancas passaram a encarnar a Felicidade. Descobri muito cedo que a Felicidade é camaleônica. Não tem cor, idade, origem, status, é invisível e ao mesmo tempo, palpável. Se materializa em formas diversas, e tanto pode ser uma loura baixinha ou u´a mulata de um metro e oitenta. Quem a formata? Como a formata? Sabe o dizer "quem ama o feio bonito lhe parece"? Pois é, aplica-se perfeitamente ao caso. Quem você ama quase sempre parece a mais bonita, a mais bem feita, a mais séria e se convier, a mais safada; se não convier, nem por isso ela muda, mas sempre é vista por ângulo que só você vê. Foi por aí que comecei a ver a materialização da infidelidade. Eu achava que a Felicidade jamais em abandonaria. Não que eu me julgasse irresistível ou tivesse a pretensão de ser o seu amo e senhor (bem que eu gostaria), mas como percebi com o passar do tempo a Felicidade também é caprichosa e algumas vezes, quando menos esperava, eu não via, mas sentia que ela me abandonava. Eu ficava sem saber como agir? O que fazer ? Procurá-la ? Onde ? Ela tem um esconderijo que nem o FBI, a CIA, o Mossad, a PF, jamais suspeitariam. Descobri em uma noite de insônia, onde ela se acoitava. Isso mesmo, ela estava escondida, algumas vezes até camuflada, outras vezes sem nenhum disfarce, no meu coração. Sabendo onde ela estava, achei que seria fácil encontrá-la. Ledo engano. Fiz tudo que era possível, porém ela, caprichosamente
(convém não esquecer que o capricho é uma de suas características mais marcantes) se negava a atender aos meus apelos, às minhas promessas. Só voltava quando queria. Vez por outra, ela "dava um tempo". Sumia e de nada adiantavam os meus esforços. Fazia tudo para reencontrá-la, mas em seu lugar apareciam umas lá que eu não suportava, embora fizesse o possível para conviver com as mesmas, se não,era pior. Pois é. Em seu lugar apareciam sem ser convidadas algumas que eu nunca acreditei pudessem ser sequer suas conhecidas, quantos mais, parentas ou amigas íntimas. Chegavam uma tal de Tristeza, o primo Desencanto, a terrível Decepção, o medonho Desamor, e a pior: a sua irmã gêmea e "alter ego" Infelicidade, invejosa ao extremo e que estava sempre à espreita, aguardando uma oportunidade para infernizar a vida de alguém, fosse no trabalho, fosse com a saúde, fosse nas relações pessoais. O mar já não parecia tão encantador, a lua parecia não ter o mesmo fascínio, a saúde oscilava e os remédios começavam a ocupar um lugar de destaque no meu dia a dia, o bolso parecia sempre mais raso, já não servia para guardar o dinheiro, que se esvaía que eu soubesse para onde ia, os amores eram só recordações que pareciam cada mais distantes e menos presentes  Vez por outra, apareciam em meu caminho e eu já tinha até algumas mandingas, algumas tretas para afastá-los. Transformei uma inimiga em aliada, e assim passei a usar sempre que necessário, os serviços da Hipocrisia e quase sempre conseguia afastá-los até que a Felicidade retornasse. Eu pensava que ela gostasse de mim, pois várias  ela foi e voltou. Algumas vezes me peguei pensando se ela não queria me dar alguma lição, me mostrar que eu não podia viver sem ela. Eu já estava tão acostumado a ser feliz que achava ser a Felicidade uma integrante natural de minha existência. Passei a questionar se essa tal de Felicidade existia mesmo, apesar de sempre ter percebido a sua presença em minha vida. Passei a perguntar se ela existia de fato e o que poderia fazer para mantê-la sempre ao meu lado. Passei a inquirir o meu coração, por  várias noites, querendo saber o que eu tinha feito para tê-la comigo durante tanto tempo e o que deixara de fazer para que ela se afastasse por tão longo período como agora. Eu tentei explicações olhando as estrelas, o horizonte, o mar. Não obtive nenhuma resposta, nenhuma pista, nenhum sinal. Até dentro do coração onde muitas vezes a encontrei, a procurei em vão. Não consegui vê-la nos lugares por onde andei e onde sempre nos encontrávamos; não a encontrei mais nas flores, no sol das manhãs, na água morna do mar, no gargalhar sem freio de uma criança contente, naquelas roupas comuns que eu vestia e me olhava no espelho com alegria me achando assim um super modelo lindo, só porque ela estava ao meu lado. Tentei nas comidas saborosas, nas moedas para comprar e degustar um acarajé suavemente apimentado, nos odores inesquecíveis como  o cheiro de uma mulher amada, nos bailes que frequentei, nas frutas colhidas e chupadas na hora, sem lavar, sem medo, enfim, nas pequenas coisas que nunca pensei, juntas ou mesmo separadas, por alguns instante me traziam Felicidade. E agora, o que posso ou o que devo fazer? Além da hipocrisia do riso sem graça para tentar "deixar a vida me levar" como diz a música, voltei a ter contato com quem eu nunca deveria ter menosprezado, nunca ter esquecido, que eu deveria ter valorizado muito mais e com certeza vai me ajudar a reencontrar a Felicidade. Algumas vezes a perdi de vista, algumas vezes acho que a procurei em lugar errado, pois hoje tenho a certeza,que ela sim, é fiel, apesar do esquecimento a que foi relegada, ela nunca me abandonou, sempre me dando força, sempre comigo nos momentos mais difíceis e até mesmo mais improváveis, ela estava ali, tranquila, calma, às vezes escondidinha em seu canto modesto, com aquela persistência que só quem sabe realmente quem é, o que quer, que às vezes também finge não estar, se esconde, se camufla, aparece sob as mais diversas formas e nos imomentos mais inusitados

Felicidade